ENTENDENDO O LIVRO DE JÓ
C. H. Mackintosh
O
livro do Jó ocupa um lugar muito particular na Palavra de Deus. Tem um carácter
totalmente próprio, e ensina lições que as não vamos encontrar em nenhuma outra
parte do inspirado Volume. Recebemos o livro do Jó como parte das Santas
Escrituras e, por conseguinte, para o proveito e bênção do povo de Deus.
Recebemos o livro como procedente de Deus, e isto basta-nos. Cremos de todo
coração que é um escrito inspirado, e sentimos que não nos incumbe discutir a
questão referente a onde, quando ou por quem foi escrito.
Queira o Espírito eterno — o Autor do livro— explicá-lo e aplicá-lo às nossas almas!
A GRANDE PROSPERIDADE DE JÓ
Na primeira folha deste notável livro vemos o patriarca Jó rodeado de tudo quanto o mundo podia fazer agradável aos seus olhos, assim como de coisas que neste mundo lhe podiam outorgar um lugar importante. “Havia um homem na terra de Uz, cujo nome era Jó; e era este homem íntegro, reto e temente a Deus e desviava-se do mal.” (Jó 1:1 ) Vemos aqui o que era Jó na sua vida.
VEJAMOS O QUE JÓ POSSUIA-
“E nasceram-lhe sete filhos e três filhas. E o seu gado era de sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas jumentas; eram também muitíssimos os servos a seu serviço, de maneira que este homem era maior do que todos os do oriente. E iam seus filhos à casa uns dos outros e faziam banquetes cada um por sua vez; e mandavam convidar as suas três irmãs a comerem e beberem com eles.” (Jó 1:2-4 )
VEJAMOS TAMBÉM O QUE JÓ FAZIA-
“Sucedia, pois, que, decorrido o turno de dias de seus banquetes, enviava Jó, e os santificava, e se levantava de madrugada, e oferecia holocaustos segundo o número de todos eles; porque dizia ele: Talvez pecaram meus filhos, e amaldiçoaram a Deus no seu coração. Assim fazia Jó continuamente. (Jó 1:5 )
“Sucedia, pois, que, decorrido o turno de dias de seus banquetes, enviava Jó, e os santificava, e se levantava de madrugada, e oferecia holocaustos segundo o número de todos eles; porque dizia ele: Talvez pecaram meus filhos, e amaldiçoaram a Deus no seu coração. Assim fazia Jó continuamente. (Jó 1:5 )
Aqui
temos, pois, um modelo de homem bastante fora do comum. Era perfeito e reto,
temeroso de Deus e afastado do mal. Além disso, a mão de Deus o protegia em
tudo, e derramava sobre o seu caminho as mais ricas bênçãos. Jó tinha tudo o
que o coração pudesse desejar: filhos, abundância de riquezas, honra e
distinção sobre todos os que o rodeavam. Numa palavra, quase diríamos que a
taça do seu deleite terrestre estava cheia.
O ORGULHO DO JÓ
O ORGULHO DO JÓ
Mas Jó precisava de ser provado. Abrigava no seu coração uma profunda raiz moral que tinha de ser manifestada à luz; uma justiça própria que tinha de sair à superfície e ser julgada. Podemos, com efeito, vislumbrar esta raiz nos versículos que acabamos de ler. Ele diz: “Talvez pecaram meus filhos” (Jó 1:5 ). Não parece ter contemplado a possibilidade de que ele mesmo tenha cometido algum pecado. Uma alma que realmente se julgou a si mesma, uma alma quebrantada ante Deus, verdadeiramente consciente do seu próprio estado, das suas tendências e incapacidades, teria pensado nos seus próprios pecados e na necessidade de oferecer um holocausto por si mesmo.
Mas deve ficar claro ao leitor que Jó era um verdadeiro santo de Deus, uma alma divinamente vivificada, um possuidor da vida divina e eterna. Não poderíamos insistir o suficiente sobre este ponto. Ele era um homem de Deus tanto no primeiro capítulo como no último. Se não nos apercebemos disto, privar-nos-emos de uma das grandes lições deste livro. O versículo 8 do primeiro capítulo estabelece este ponto fora de toda a dúvida: “E disse o SENHOR a Satanás: Observaste tu a meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus, e que se desvia do mal. (Jó 1:8 )
Todavia, apesar disso, Jó nunca tinha sondado as profundidades do seu próprio coração. Não se conhecia a si mesmo. Nunca tinha captado realmente a verdade da sua própria condição de ruína, da sua total corrupção. Jamais tinha aprendido a dizer: “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Rm 7:18 ) Se não se compreender este ponto, não se entenderá o livro de Jó. Não captaremos o objetivo específico de todos esses profundos e penosos exercícios pelos quais Jó teve que passar, a menos que tenhamos clarificado o solene fato de que a sua consciência nunca tinha estado realmente na presença divina, que ele nunca se tinha examinado ante a luz, que jamais se mediu com a vara divina e que nunca se tinha pesado na balança do santuário de Deus.
Se nos remetermos por uns instantes ao capítulo 29 acharemos uma prova fidedigna do que acabamos de afirmar. Veremos ali de forma clara a profunda e robusta raiz da satisfação pessoal que havia no coração deste querido e honrado servo de Deus, e a maneira como esta raiz se nutria dos mesmos sinais do favor divino que a rodeavam. Este capítulo encerra um patético lamento pelo brilho embaciado dos seus dias passados; além disso, o tom e o caráter deste lamento deixam manifesto quão necessário era que Jó se despojasse de tudo a fim de conhecer-se si mesmo à luz da presença divina que tudo esquadrinha. Escutemos suas palavras:
“AH! QUEM ME DERA SER COMO EU FUI NOS MESES PASSADOS, COMO NOS DIAS EM QUE DEUS ME GUARDAVA! QUANDO FAZIA RESPLANDECER A SUA LÂMPADA SOBRE A MINHA CABEÇA E QUANDO EU PELA SUA LUZ CAMINHAVA PELAS TREVAS. COMO FUI NOS DIAS DA MINHA MOCIDADE, QUANDO O SEGREDO DE DEUS ESTAVA SOBRE A MINHA TENDA;
QUANDO O TODO-PODEROSO AINDA
ESTAVA COMIGO, E OS MEUS FILHOS EM
REDOR DE MIM.
QUANDO LAVAVA OS MEUS PASSOS NA
MANTEIGA, E DA ROCHA ME CORRIAM
RIBEIROS DE AZEITE; QUANDO EU SAÍA PARA A PORTA DA CIDADE,
E NA RUA FAZIA PREPARAR A MINHA CADEIRA, OS MOÇOS ME VIAM, E SE
ESCONDIAM, E ATÉ OS IDOSOS SE LEVANTAVAM E SE PUNHAM EM PÉ; OS PRÍNCIPES
CONTINHAM AS SUAS PALAVRAS, E PUNHAM A MÃO SOBRE A SUA BOCA; A VOZ DOS NOBRES
SE CALAVA, E A SUA LÍNGUA APEGAVA-SE AO SEU PALADAR. OUVINDO-ME ALGUM
OUVIDO, ME TINHA POR BEM-AVENTURADO; VENDO-ME ALGUM OLHO, DAVA TESTEMUNHO
DE MIM; PORQUE EU LIVRAVA O MISERÁVEL, QUE CLAMAVA, COMO TAMBÉM O ÓRFÃO QUE NÃO
TINHA QUEM O SOCORRESSE. A BÊNÇÃO DO QUE IA PERECENDO VINHA SOBRE MIM, E EU FAZIA QUE
REJUBILASSE O CORAÇÃO DA VIÚVA. VESTIA-ME DA JUSTIÇA, E ELA ME SERVIA DE
VESTIMENTA; COMO MANTO E DIADEMA ERA A MINHA JUSTIÇA.
EU ME FAZIA DE OLHOS PARA O CEGO,
E DE PÉS PARA O COXO. DOS NECESSITADOS ERA PAI, E AS CAUSAS DE QUE EU NÃO TINHA
CONHECIMENTO INQUIRIA COM DILIGÊNCIA. E QUEBRAVA OS QUEIXOS DO PERVERSO, E DOS
SEUS DENTES TIRAVA A PRESA. E DIZIA: NO MEU NINHO EXPIRAREI, E MULTIPLICAREI OS
MEUS DIAS COMO A AREIA. A MINHA RAIZ SE ESTENDIA JUNTO ÀS ÁGUAS, E O ORVALHO
PERMANECIA SOBRE OS MEUS RAMOS; A MINHA HONRA SE
RENOVAVA EM MIM, E O MEU ARCO SE
REFORÇAVA NA MINHA MÃO.
OUVIAM-ME E
ESPERAVAM, E EM SILÊNCIO ATENDIAM AO MEU CONSELHO.
HAVENDO EU FALADO, NÃO
REPLICAVAM, E MINHAS RAZÕES
DESTILAVAM SOBRE ELES; PORQUE ME ESPERAVAM, COMO À CHUVA; E
ABRIAM A SUA BOCA, COMO À CHUVA TARDIA. SE EU RIA PARA ELES, NÃO O CRIAM, E
A LUZ DO MEU ROSTO NÃO FAZIAM ABATER;
EU ESCOLHIA O SEU CAMINHO, ASSENTAVA-ME
COMO CHEFE, E HABITAVA COMO REI ENTRE AS SUAS TROPAS; COMO AQUELE QUE CONSOLA
OS QUE PRANTEIAM. AGORA, PORÉM, SE RIEM DE MIM OS DE MENOS IDADE DO QUE EU,
CUJOS PAIS EU TERIA DESDENHADO DE PÔR COM OS CÃES DO MEU REBANHO. (JÓ 29:2 A
30:1 )
Estas, certamente, são expressões muito notáveis. Em vão procuraremos aqui os suspiros de um espírito contrito e quebrantado. Não há sinais de nenhum aborrecimento próprio, nem muito menos de uma desconfiança em si mesmo. Expressões que manifestem consciência de debilidade ou de insignificância, brilham pela sua ausência. Só no decurso deste capítulo, Jó menciona-se a si mesmo mais de quarenta vezes, enquanto que os seus pensamentos não se dirigem a Deus mais do que cinco vezes.
Estas, certamente, são expressões muito notáveis. Em vão procuraremos aqui os suspiros de um espírito contrito e quebrantado. Não há sinais de nenhum aborrecimento próprio, nem muito menos de uma desconfiança em si mesmo. Expressões que manifestem consciência de debilidade ou de insignificância, brilham pela sua ausência. Só no decurso deste capítulo, Jó menciona-se a si mesmo mais de quarenta vezes, enquanto que os seus pensamentos não se dirigem a Deus mais do que cinco vezes.
Este
constante predomínio do eu
faz-nos recordar o capítulo sete de Romanos “Não
sabeis vós, irmãos (pois que falo aos que sabem a lei), que a lei tem domínio
sobre o homem por todo o tempo que vive? Porque a mulher que está sujeita ao
marido, enquanto ele viver, está-lhe ligada pela lei; mas, morto o marido, está
livre da lei do marido. De sorte que, vivendo o marido, será chamada adúltera
se for de outro marido; mas, morto o marido, livre está da lei, e assim não
será adúltera, se for de outro marido. Assim, meus irmãos, também vós estais
mortos para a lei pelo corpo de Cristo, para que sejais de outro, daquele que
ressuscitou dentre os mortos, a fim de que demos fruto para Deus. Porque,
quando estávamos na carne, as paixões dos pecados, que são pela lei, operavam
em nossos membros para darem fruto para a morte. Mas agora temos sido
libertados da lei, tendo morrido para aquilo em que estávamos retidos; para que
sirvamos em novidade de espírito, e não na velhice da letra. Que diremos pois?
É a lei pecado? De modo nenhum. Mas eu não conheci o pecado senão pela lei;
porque eu não conheceria a concupiscência, se a lei não dissesse: Não
cobiçarás. Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, operou em mim toda a
concupiscência; porquanto sem a lei estava morto o pecado. E eu, nalgum tempo,
vivia sem lei, mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri. E o
mandamento que era para vida, achei eu que me era para morte. Porque o pecado,
tomando ocasião pelo mandamento, me enganou, e por ele me matou. E assim a lei
é santa, e o mandamento santo, justo e bom. Logo tornou-se-me o bom em morte?
De modo nenhum; mas o pecado, para que se mostrasse pecado, operou em mim a
morte pelo bem; a fim de que pelo mandamento o pecado se fizesse excessivamente
maligno. Porque bem sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido
sob o pecado. Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero isso não faço,
mas o que aborreço isso faço. E, se faço o que não quero, consinto com a lei,
que é boa. De maneira que agora já não sou eu que faço isto, mas o pecado que
habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem
algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem.
Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço. Ora, se eu
faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim. Acho
então esta lei em mim, que, quando quero fazer o bem, o mal está comigo.
Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus; Mas vejo nos
meus membros outra lei, que batalha contra a lei do meu entendimento, e me
prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros. Miserável homem que
eu sou! quem me livrará do corpo desta morte? Dou graças a Deus por Jesus
Cristo nosso Senhor. Assim que eu mesmo com o entendimento sirvo à lei de Deus,
mas com a carne à lei do pecado.” (Rm 7:1-25);
Mas há que assinalar uma importantíssima diferença, a saber, que no
capítulo sete de Romanos, o eu é uma pobre, débil, imprestável e miserável
criatura que se acha em presença da santa lei de Deus; enquanto que em Jó 29, o
eu é um personagem de destacada importância e influência, um personagem
admirado e quase adorado pelos seus semelhantes.
Tradução de Carlos António da Rocha
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