As revelações de uma mulher que aprendeu a caminhar com Deus
Na
historia da Igreja poucas pessoas têm atingido o alto grau de espiritualidade
alcançado por Mme Guyon. Em sua autobiografia ela revela o seu íntimo, as suas lutas interiores para obter a
purificação de sua alma e a sua sensibilidade em relação à presença de Deus em
sua vida.
Nascida em uma época corrupta,
em uma nação marcada por sua degeneração, criada em uma igreja devassa assim
como o mundo em que estava inserida, perseguida em cada passo do seu caminhar,
tateando como fez em ignorância e desolação espiritual, ela subiu, todavia, ao
pináculo mais alto de preeminência em espiritualidade e devoção cristã. Tendo
vivido e morrido na Igreja Católica, ainda assim foi atormentada e afligida,
maltratada e abusada, até mesmo pela própria igreja e foi aprisionada por anos pelas mais altas autoridades por discordar de alguns credos e práticas católicas. O seu único crime foi o de amar a Deus. A sua culpa foi a sua
suprema devoção e afeição a Cristo. Quando pediram seu dinheiro e propriedade,
alegremente os entregou.
Jeanne Marie Bouvier de La Motte,
nasceu em 13/04/1648 em Montargis, França. Seu pai, era extremamente piedoso, sua mãe ,
entretanto a rejeitou.
Aos quatro anos, por permissão
concedida por seu pai, foi viver no Convento das Beneditinas, levada pela
Duquesa de Montbason, a qual gostou muito da menina devido à sua maneira
alegre, doce e esportiva de ser. Como toda criança, ela fazia muitas artes, mas
já era desde esta tenra idade atraída pelas coisas de Deus. Gostava de ouvir
falar Dele, de estar na Igreja e de ser vestida com vestes religiosas.
Depois deste período voltou para
casa, e novamente foi negligenciada por sua mãe e entregue aos cuidados dos
empregados.
Aos sete anos voltou para o Convento
das Ursulinas, onde encontrou duas meia-irmãs. Sua irmã por parte de pai foi de
muita ajuda para sua vida espiritual. Ela veio a ser quem proveu os primeiros
meios de salvação na vida de Mme Guyon. Era muito gentil e amava muito a
menina, sabendo despertar nela as boas qualidades que ela tinha e instruí-la na
piedade.
Por solicitação de seu pai, ela
sempre o visitava em casa e em uma destas visitas encontrou a rainha da
Inglaterra, a qual ficou tão impressionada com suas atitudes e respostas que
pediu a seu pai consentimento para levá-la para a corte, sob seus cuidados,
para ser dama de companhia da princesa. Seu pai não permitiu, o que ela
atribuiu à providência de Deus para que não fosse influenciada pelas tentações
e divertimentos da corte. Com o passar do tempo, porém, adquiriu muitos maus
hábitos como mentira, impertinência e falta de devoção, passando às vezes dias
inteiros sem pensar em Deus. Mas ela conta que apesar disto, Deus sempre a
observava e vigiava, providenciando para que voltasse aos cuidados de sua irmã,
deixando assim os péssimos hábitos. Deus sempre lhe mostrou Sua graça, mesmo
nas suas infidelidades.
Tinha tremendo prazer em ouvir falar
de Deus, não se cansava da Igreja, gostava de orar e tinha afeto pelos pobres. É impressionante como Mme Guyon, ainda uma
criança de sete anos, tinha certas atitudes de auto-sacrifício. É bom salientar
aqui que mesmo muitas vezes sendo castigada, tanto em sua infância como também
depois em sua fase já adulta, ela declarou em seu livro que não se lembrava de
temer qualquer castigo mais do que temia causar dor Àquele a quem amava, a
ponto de declarar que mesmo que não existisse “céu ou inferno” ela sempre iria
reter o mesmo temor de desagradar a Deus.
Aos dez anos foi transferida do
Convento das Ursulinas para outro da ordem de St. Dominie. Aliás, apesar da
Madre gostar muito dela, não tinha muito tempo para a menina e ela com isto não
teve quase nenhum cuidado, caiu muito doente e passava muito tempo sozinha.
Achando uma Bíblia, passava dias e dias lendo-a de manhã até à noite, sendo
esta a sua distração.
Após oito meses retornou para casa,
onde conseguiu obter um cuidado um pouco melhor de sua mãe. Mesmo assim, era
maltratada e sofria muitas injúrias por parte de seu irmão, o qual estava
sempre certo e com razão. Sua mãe, e por conseqüência também os criados, fazia
uma distinção muito grande entre ela e seu irmão, o qual também aprendeu com
isto a desprezá-la. Esta animosidade dele para com ela nunca se desfez e isto
trouxe muitos problemas mais tarde no relacionamento entre ambos. Ela sofreu
neste tempo muitas doenças, perseguições e incompreensões dentro da própria
casa, vindas muitas vezes de sua própria mãe. Este comportamento da família em
relação a ela foi a causa de muitas de suas atitudes erradas, pois não tinha
estímulo nenhum de fazer o certo. Ela nunca tinha razão de coisa alguma. Mas
apesar destas faltas, era muito amável e caridosa com os pobres, orava a Deus
assiduamente, amava ouvir falar sobre Ele e ler bons livros. Apesar de todas as
suas faltas o Senhor sempre a cercou e a conquistou.
Como cresceu e se tornou uma jovem
muito bonita, sua mãe a aceitou melhor, tendo um certo orgulho desta beleza que
Deus tinha presenteado a sua filha (para louvor Dele). Entretanto, esta beleza
trouxe a Mme Guyon uma espécie de orgulho e vaidade. Tinha apenas doze anos e
já recebia muitas propostas de casamento, as quais seu pai recusava. Mme Guyon
começou a despertar-se tremendamente para sua salvação, o que a levou a
procurar seu confessor, preocupada com isto. Tinha lutas constantes: ora cheia
de ardor pelo Senhor, ora tão longe Dele. Mas ela declarou que “o Deus de amor
sempre batia à porta do seu coração¨.
Nessa época ela seguia os exercícios
religiosos, lia e orava o dia todo, dava tudo o que tinha aos pobres,
ensinava-lhes o catecismo e os servia com alimentos. Lia também muitas obras de
escritores religiosos, entre eles os escritos de Mme Chantal, a qual a
influenciou de tal maneira que Mme Guyon procurava imitá-la em tudo.
Mme Guyon tinha altos e baixos.
Apesar de manter as aparências, interiormente começou a se afastar de Deus e
dar lugar à vaidade. Vaidade esta tanto em relação à sua aparência como também
à sua reputação. A alta estima que tinha por si mesma a fazia achar erros em
todas as outras pessoas. Nesta fase começou a ler outros livros ao invés de literatura
santa, gastando horas em alimentar sua vaidade própria. Mas como dizia, “Deus
sempre batia à porta do seu coração”, o que muitas vezes a levava às lágrimas.
Ela conta em sua autobiografia que esta triste experiência lhe deu muita
compaixão pelos pecadores, ensinando-a a razão de tão poucos emergirem deste
estado miserável no qual são tão suscetíveis de entrarem. Ela declarou que na luta que as pessoas têm contra a apatia espiritual,
da qual é difícil sair, o único remédio é a oração. Sobre
isto afirmou: “o diabo se opõe tremendamente tentando convencer as pessoas de
que primeiro elas precisam ser perfeitamente convertidas¨.
Aliás, ela faz uma ressalva
aqui! O diabo usa todas as suas forças contra a oração e contra aqueles que a
praticam, porque ele sabe que este é o verdadeiro meio de tomar uma presa das
mãos dele. Ele não se importa muito com os serviços que fazemos e nem com a
nossa inteireza de caráter na qual procuramos andar, mas tão logo entramos na
vida espiritual, uma vida de oração, temos que estar preparados para todo tipo
de cruz que virá. Todo tipo de desprezo e perseguição que neste mundo está
reservado para esta vida.
Ao falar sobre os sentimentos de luta
interior que tinha nesta época, declarou em seu livro: “Quão estranho isto pode
parecer às pessoas, quão difícil de reconciliar coisas tão
opostas.”
Aos quinze anos Mme Guyon se casou
com Jacques Guyon, Lord du Chesnoy, em um casamento arranjado por seu pai.
Deste casamento teve cinco filhos. A princípio ela ficou satisfeita, pois via
neste casamento uma oportunidade de livrar-se dos maus tratos de sua mãe. Mas
Deus tinha um propósito totalmente oposto. A condição na qual se encontrou mais
tarde frustrou suas esperanças.
Com seu casamento, viu-se obrigada a
mudar sua conduta, perder toda sua maneira nobre e elegante de viver, seus
tratos finos, enfim, tudo o que havia adquirido com tanta dedicação em sua
educação. O modo de vida da família de seu marido era muito diferente do da
casa de seu pai. Ela havia sido ensinada e incentivada a expor suas idéias com
firmeza, sendo aplaudida por isto. Agora tudo o que dizia era tido como uma
afronta a eles e sempre ocasionava mal entendido, levando-os a distratarem-na.
Sua sogra sempre censurava a família dela. Eles a forçavam a ficar em silêncio
de uma forma bruta e vergonhosa e brigavam com ela de manhã até à noite.
Sua sogra tanto se opunha a ela que
lhe dava as tarefas mais humilhantes para fazer. Toda a ocupação de sua sogra
era de frustrá-la e inspirar os mesmos sentimentos em seu filho, o qual dava
muito crédito a tudo que sua mãe dizia a respeito dela, embora muitas vezes
tomasse sua defesa. A diferença de idade entre ela e seu marido também agravava
a situação, pois isto lhe dava uma certa distância (ele era vinte e dois anos
mais velho). Apesar disto, ela afirmou que seu marido a amava; não fosse por
sua sogra e sua serva, poderia ter sido muito feliz com ele. Sua sogra a
difamava entre as pessoas dizendo que ela tinha um espírito mau, fazendo com
que cada vez mais ela se fechasse dentro de si mesma. Para aumentar ainda mais
suas cruzes, sua própria mãe falava mal dela com sua sogra.
Faziam com que as pessoas de classe
inferior fossem colocadas acima dela. Sua condição no casamento era mais a de
uma escrava do que a de uma pessoa livre. Deram a ela uma serva que além de
destratá-la o tempo todo de formas absurdas (com berros e maus tratos), a
vigiava constantemente como uma governanta, não somente ela, mas também todos
os outros empregados.
Tal era seu sofrimento que estava
quase pronta a morrer com as agonias de sua dor e contínuo tormento e afronta.
Ela disse que comia o pão de dores e misturava as suas lágrimas com a sua
bebida.
Mme Guyon se referiu em seu livro a
esta nova fase de sua vida da seguinte maneira: “Eu lhe peço para não interpretar
as coisas aos olhos da criatura, o que faria com que essas pessoas pareçam
piores do que eram. Minha sogra era virtuosa, meu marido era religioso e não
tinha nenhum vício. Devemos olhar todas as coisas aos olhos de Deus. Ele
permitiu tudo somente para a minha salvação e porque Ele não queria que eu me
perdesse. Além disso, tinha tanto orgulho, que tivesse eu recebido qualquer
outra forma de tratamento, teria continuado da mesma maneira, sem talvez me
voltar para Deus da forma como fui induzida a fazê-lo, pela opressão de uma
multidão de cruzes¨.
Foi nessa condição tão deplorável que
começou a perceber a necessidade da assistência de Deus. Essas cruzes a
atraíram a Ele. Orava ao Senhor para ajudá-la e Ele era o seu refúgio. Ela
declarou em seu livro: “A conduta deles em relação a mim, a qual parece tão sem
sentido, não deve ser encarada com olhos terrenos. Devemos olhar mais alto e
então veremos que isso foi direcionado pela Providência para minha vantagem e
galardão eterno¨.
Tudo isto, como ela mesma afirmou, a
fez morrer para sua vã e soberba natureza. Ela começou a achar em Deus razões
para o sofrimento, o qual lhe era bem necessário.
Foi perto de seus dezoito anos, próximo dos dias de
ganhar seu segundo filho que Mme Guyon experimentou sua verdadeira conversão,
com a ajuda de um religioso da ordem de São Francisco, com poucas palavras tais
como: “Procure Deus no seu coração e você o encontrará ali”. Estas palavras
foram como um dardo que penetrou até o fundo do seu coração, trazendo-lhe aquilo
que ela havia estado procurando por tantos anos. Ainda mais, elas lhe revelaram
o que estava ali, o que ela ainda não havia desfrutado por não saber.
Diante disto, exclamou: “Ó Senhor, Tu estavas em meu
coração, e somente esperavas por um simples voltar-me para dentro de mim mesma
para perceber a Tua presença. Ó Infinita Bondade! Quanto que eu corria de lá
prá cá procurando a Ti; minha vida era um fardo para mim, apesar da minha
felicidade estar dentro de mim mesma. Eu era pobre no meio de riquezas, e pronta
a perecer de fome junto a uma mesa fartamente posta numa festa contínua. Ó
Formoso, antigo e novo, por que fui Te conhecer tão tarde? Ai de mim! Eu Te
procurava aonde não estavas, e não aonde Tu estavas. Eu estava à procura de
entendimento destas palavras do Teu evangelho: “…Não vem o reino de Deus com
visível aparência… o reino de Deus está dentro de vós” (Lucas 17:20,21). Isso agora eu experimentei, pois
Tu Te tornaste o meu Rei, e o meu coração o Teu reino, no qual Tu Te tornaste
supremo e realizaste toda a Tua vontade sagrada.
Eu não tenho agora qualquer outra
visão, senão a de Jesus Cristo somente. Quão tremenda é a revelação de Jesus
Cristo à alma quando a Palavra Eterna é comunicada. Isso nos torna novas
criaturas, criadas de novo Nele¨.
Depois desta experiência ela começou
a buscar mais ainda os interesses de Deus do que os dela, a esperar grandes sofrimentos
e a desejar uma mortificação a tudo do eu. O amor de Deus ocupava o seu coração
tão constante e fortemente que não podia pensar em mais nada. Na realidade, ela
não julgava nada digno de seus pensamentos que não fosse Deus. Esta sua imersão
em Deus absorveu todas as coisas. Apesar de amar ternamente certos santos como
São Pedro, São Paulo, Santa Maria Madalena, Santa Teresa, ainda assim não podia
pensar mais neles, nem invocá-los, senão a Deus. Seu único prazer agora era
arranjar momentos para ficar completamente sozinha com o Senhor. Todos os
outros prazeres lhe eram dolorosos. Em sua feliz experiência, sabia que a alma
tinha sido criada para desfrutar do seu Deus.
Suas palavras: “Quando a
vontade da criatura se submete a Deus inteiramente, entregando tudo à vontade
divina, deixando-se ser totalmente aniquilada, através da operação de amor
(cruzes), essa vontade é absorvida pela de Deus e o ser é purificado do eu.
Quanto mais Deus aumenta o meu amor e minha paciência, menos temor e respeito
tenho pelas cruzes mais opressoras, mas o amor as torna fáceis de suportar¨.
Ela ainda deixou escritas estas
palavras para definir o que estava se passando em seu coração: “Eu esperava
continuamente Nele e Ele me vigiava incessantemente, e de tal forma me conduzia
pela Sua Providência que esquecia todas as outras coisas. Eu não sabia como
comunicar o que sentia para ninguém. Estava tão imersa em mim mesma que
raramente conseguia fazer um auto-exame. Quando tentava, tudo na minha mente se
confundia. Eu me encontrava ocupada com o meu Único Objeto. Estava absorvida
numa paz inexprimível, via com os olhos da fé que era Deus que me possuía
totalmente dessa forma. Mas não era de se supor que o amor divino permitisse
que as minhas faltas ficassem sem punição. Com que rigor o Senhor pune os Seus
fiéis e amados filhos. Nessas horas não devemos buscar aliviar nossas dores
tentando achar consolo em outras pessoas, abrindo o nosso coração. Deveríamos
antes suportar as provações passivamente enquanto duram, para que a obra que o
Senhor quer realizar em nós seja completada e assim avancemos mais no nosso
processo espiritual. Isso é difícil e requer grande firmeza e coragem. Muitos
não avançaram mais no seu caminhar por causa da impaciência e por procurarem
meios de consolação¨.
Quando enxergou tudo isto, começou a
suportar silenciosamente os agravos de seu marido e de sua sogra. Isto passou a
não ser tão difícil para ela devido à grandeza de sua ocupação interior, o que
a mantinha insensível a todo o resto. Com esta atitude, sua situação em casa
piorou ainda mais. Todos em sua casa desfaziam dela, desde o marido até a
criada. Suportava tudo em profundo silêncio, estando recolhida no Senhor. Desta
forma passou a viver, e o mundo, vendo que ela o tinha deixado, passou a perseguí-la,
fazendo-a passar por ridícula e objeto de muitas fábulas. Ele não podia aceitar
que uma mulher ainda tão nova, com quase vinte anos agora, pudesse desprezá-lo
e ser vitoriosa sobre ele. Ela tinha bem pouca comunhão com este mundo e
parecia experimentar literalmente as palavras de Paulo: “…já não sou eu quem
vive, mas Cristo vive em mim”. Ela não foi compreendida apenas no mundo
secular, mas também passou a ser incompreendida no mundo religioso. Aqueles que
estavam aquém desta nova experiência que ela vivia, ou por inveja ou por
ignorância, também passaram a perseguí-la.
Mme Guyon começou a experimentar um
estado de oração contínua, uma vida de oração silenciosa. Ela declarou: “A oração para mim era recompensada com a cruz, e a cruz com a oração.
Dons inseparáveis e unidos em meu coração e vida”. O clérigo de Paris da época
declarou que nunca tinha visto uma mulher a quem Deus mantinha tão perto Dele e
em tão grande pureza de consciência. Ela declarou que o que a mantinha assim
era o cuidado contínuo de Deus sobre si, fazendo-a sentir a sua presença como
Ele prometeu no Evangelho.
“Se alguém me ama, guardará a
minha Palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada”.
(João 14:23)
“Se o Senhor não edificar a
casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em
vão vigia a sentinela”. (Salmo 127:1)
Ela disse: “Deixem outros
atribuírem a vitória à própria fidelidade deles. Quanto a mim, nunca a
atribuirei a coisa alguma que não seja o Teu cuidado paternal”.
É interessante notar que mesmo tendo
atingido esta compreensão espiritual, ainda tinha tempos de lutas interiores
com sua vaidade, que segundo ela mesma mencionou, foi algo muito difícil de
deixar, pois emergia quando ocasiões eram proporcionadas, embora ela
rapidamente retornasse para Deus.
Ela declarou: “Ó Senhor, não és todo
suficientemente forte para erradicar esta duplicidade injusta do meu coração?
Pois se alguém ler esta vida com atenção, verá da parte de Deus somente
bondade, misericórdia e amor; e da minha parte, fraqueza, pecado e
infidelidade”.
Fosse o que fosse que tivesse de
suportar, suportava em silêncio, sem se justificar, entregando tudo Àquele que
é amor. O seu coração tinha uma linguagem que era feita sem o som de palavras,
entendida por Deus, visto que só Ele é capaz de entender a linguagem da
Palavra, a qual incessantemente fala bem dentro da alma.
Outro golpe na vida de Mme Guyon foi
a perda de seu pai e sua filha ao mesmo tempo, logo após ela se restabelecer de
varíola. Ambos morreram em 1672 quando Mme Guyon estava então com vinte e
quatro anos.
Ela teve mais dois filhos depois
disto (um filho e uma filha, à qual deu à luz pouco antes de seu marido
falecer).
Com a morte de seu marido, em julho
de 1676, Mme Guyon entrou em seu quarto e em frente à imagem de Cristo, renovou
seu contrato de casamento com seu esposo divino, fazendo um voto de castidade e
fidelidade eternas.
Sendo agora uma viúva, suas dores
aumentaram ainda mais. Sua sogra e criada mostraram um desprezo ainda mais intenso
por ela. Passado algum tempo, ela se separou amigavelmente de sua sogra,
passando a viver sozinha com seus filhos. O curioso é que com o tempo Deus
mudou a situação, e ela passou a ter um bom relacionamento com sua sogra.
Também aos poucos foi sendo mal entendida pelos religiosos da igreja e
perseguida.
Foi então que conheceu o Padre
Lacombe, mais ou menos na mesma ocasião em que um forte impulso no seu interior
a impelia para ir a Genebra, ao que ela teve uma certa relutância, indagando-se
se seria correto: “Deverei chegar a tal excesso de impiedade a ponto de
abandonar a fé através da apostasia? Estarei a ponto de largar essa Igreja,
pela qual daria mil vidas? Ou, cairia da fé à qual eu selaria até mesmo com o
meu sangue?”
Contudo recebeu muitas confirmações
para ir a Genebra, através de cartas, sonhos, e até mesmo do Padre Lacombe, com
quem a partir de então passou a ter fortes laços espirituais. Eles tinham um
entendimento espiritual mútuo e compartilhavam de uma influência e compreensão
espirituais recíprocas.
Com muita relutância se separou de
seus filhos, levando consigo somente sua filha mais nova. Entendeu firmemente
que esta era a vontade de Deus, e se dispôs a deixar todas as coisas em
submissão a seu Senhor, já que era isto que Ele estava requerendo dela, e
entregou tudo à Providência. Ela disse: “Os laços com os quais o Senhor me mantém unida a
Ele, são infinitamente mais fortes do que aqueles da carne e do sangue”.
Ela nunca duvidou desta ter
sido a vontade de Deus; mesmo quando a criticavam, permanecia firme. Renunciou
à família, posição, seus bens, passando a viver sem muito sustento, tendo por
grande gozo poder padecer tudo por Aquele que ” Si mesmo se entregou por nós”.
Para resumir, ela começou a viajar
com a ajuda do Padre Lacombe, que a conduziu através de muitos ciclos de
desenvolvimento espiritual pessoal, para Genebra, Turim e Grenoble.
A natureza dos seus ensinamentos,
considerada herética pela Igreja Católica, porque tendia a excluir o mundo
exterior e os mecanismos da Igreja, levantaram suspeitas e resistência de
bispos locais, sendo com isso sempre obrigada a mudar dos lugares e até muitas
vezes a se esconder. Mas sempre encontrava aqueles que estavam em busca dessa
comunhão com Deus, aos quais não negligenciava em ajudar. Como ela mesma
declarou em seu livro, passou a ser mãe de muitos filhos. Nesta época ela teve
revelações de que as suas cruzes aumentariam e de que ainda iria padecer muito
por Cristo, o que recebeu com grande alegria e paz interior.
Foi neste período que publicou a mais
importante de suas obras, cujo título é “O Resumido e Fácil Método de
Oração”.
Em 1687, Lacombe foi preso, onde
morreu, e Mme Guyon foi aprisionada em 1688. Mas não ficou presa muito tempo.
Foi solta poucos meses depois sob a intervenção de Mme de Maintenon, a segunda
esposa de Luis XIV, que além de admirá-la muito, introduziu-a no círculo real,
onde Mme Guyon pôde influenciar espiritualmente muitas pessoas.
Foi quando conheceu seu maior
discípulo, Frei Fénelon, o qual encontrou nos seus ensinamentos as respostas
para seus dilemas espirituais. Os escritos de Fénelon, então influenciados pelo
¡Quietismo¡¦¡¦, geraram um grande alarme no meio religioso e político, o que
acabou ocasionando uma Conferência em Issy em 1695, na qual Fénelon defendia os
ensinamentos de Mme Guyon.
Estes ensinamentos foram condenados
pela Igreja Católica e Mme Guyon acabou sendo presa, ficando ali até 1703,
quando então foi solta. Um de seus grandes perseguidores foi o Padre de La
Motte, seu próprio irmão. Ela passou a viver então em Blois, onde escreveu
muitos dos seus ensinamentos e experiências.
Morreu em 9 de junho de 1717, aos
setenta anos.
Afirmações que ela fez:
“Nosso Senhor tem dado a esta
minha alma as qualidades da pedra: firmeza, resignação, insensibilidade e poder
para suportar as duras lutas e provações sob as operações de Suas mãos”.
“Eu vi que o amor de Deus na minha
alma era perfeito, sendo sem nenhuma reserva, divisão ou qualquer interesse.
Pobreza perfeita, pela privação total de tudo que era meu, tanto interiormente
como exteriormente. Obediência perfeita à vontade de Deus, submissão à Igreja e
honra a Jesus Cristo por amar somente a Ele. Quando pela perda de nós mesmos,
nos entregamos ao Senhor, nossa vontade se torna a mesma e única com a do Senhor,
conforme a oração de Cristo: ‘a fim de que todos sejam um, e como és Tu, O¡¦
Pai, em mim e eu em Ti, também sejam eles em nós’. (João 17:21)
“Quanto a mim, eu posso dizer que
tenho uma dependência de Deus contínua, em qualquer situação; minha alma está
sempre pronta a obedecer todo movimento do Seu Espírito. Penso que não há nada
no mundo que o Senhor possa requerer de mim, que eu não entregue prontamente e
com prazer a Ele. Não tenho qualquer forma de interesse por mim mesma. Quando
Deus requer qualquer coisa desta pobre alma, que está reduzida a nada, não
encontro nenhuma resistência em mim em fazer a Sua vontade, por mais dura ou
rigorosa que possa ser. Se existe um coração neste mundo, do qual Ele é o
Mestre único e absoluto, o meu parece ser um deles. A Sua vontade, embora
rigorosa é a minha vida e prazer”.
“Perder tudo por Ele é o meu
maior ganho; e ganhar tudo sem Ele seria a minha maior e pior perda”.
“Enquanto eu era prisioneira em
Vincennes, e o Senhor De La Reine me interrogava, eu passava o meu tempo em
grande paz, contente de passar o resto da minha vida lá, se tal fosse a vontade
de Deus. Eu entoava cânticos de alegria, os quais a criada que me servia
aprendia a cantar, tão rápido eu os compunha. Juntas cantávamos Seus louvores,
O¡¦ meu Deus! As pedras da minha prisão pareciam aos meus olhos como rubis; eu
as estimava mais do que o brilho sedutor de um mundo vão. Meu coração estava
cheio daquele gozo, o qual Ele concede àqueles que O amam, no meio de suas
grandes e pesadas cruzes”.
BIBLIOGRAFIA
Madame Guyon – An
Autobiography, Moody Press – Chicago. (